Em maio de 1997, o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov participou de um confronto de seis partidas contra o Deep Blue, um sistema computacional da IBM que o havia derrotado no ano anterior.
Quase 30 anos depois, Kasparov considera que, com o estágio atual da inteligência artificial, as máquinas superam os humanos em partidas de tabuleiro.
No entanto, ele destaca que, mesmo com chances cada vez mais reduzidas, os humanos ainda podem ter uma pequena probabilidade de vencer os robôs.
“Sempre há um espaço, mesmo que relativamente pequeno, onde a intuição humana, a compreensão humana, a criatividade humana podem se tornar um fator decisivo”, afirmou Kasparov à Folha.
Kasparov, enxadrista nascido no Azerbaijão, acredita que a era da competição entre humanos e máquinas já passou. Ele defende que o foco atual deve ser a colaboração para desenvolver pesquisas que ajudem a resolver problemas da humanidade.
Kasparov, reconhecido como o maior enxadrista da história, está no Brasil para promover as finais do Grand Chess Tour, circuito internacional de xadrez que ajudou a fundar em 2015. O torneio acontece em São Paulo, no WTC, de 27 de setembro a 3 de outubro.
Na competição estão alguns dos principais jogadores do mundo, como o norte-americano Fabiano Caruana, atualmente o terceiro colocado, e o indiano Rameshbabu Praggnanandhaa, quarto no ranking. Esta é a primeira vez que as finais são realizadas na América Latina, com uma premiação total de US$ 350 mil (R$ 1,9 milhão).
Suas partidas contra o Deep Blue em 1996 e 1997 foram momentos emblemáticos na história do esporte. Quase 30 anos depois, o sr. acredita que o ser humano ainda é capaz de enfrentar e derrotar a inteligência artificial? Já estamos muito além do estágio de competição. Não se trata de competir, mas de colaborar. Qualquer jogo ou atividade com padrões, regras e cálculos é domínio das máquinas, mas devemos continuar jogando levando em conta as novas informações. Graças aos computadores, agora entendemos o xadrez melhor do que antes.
Além disso, ao interagir com computadores em jogos como xadrez, Go e pôquer, coletamos dados valiosos para pesquisas. O projeto DeepMind, liderado por Demis Hassabis, começou com novos algoritmos para jogos e resultou em um Prêmio Nobel de Química por estudos sobre proteínas. A colaboração homem-máquina pode ser mais eficaz em jogos, e o xadrez foi um campo pioneiro. Fui um dos primeiros que teve seu trabalho ameaçado por uma máquina.
Existe algum aspecto do xadrez em que os humanos ainda são melhores do que as máquinas? Não se trata apenas de xadrez. Na maioria dos casos, as máquinas fazem melhores escolhas. Contudo, há um espaço onde a intuição, compreensão e criatividade humanas podem ser decisivas. O segredo para o sucesso está em reconhecer que tipo de contribuição humana pode ser agregada às máquinas em situações específicas. A busca deve ser pela sinergia eficaz.
O desenvolvimento da inteligência artificial pode representar um risco para o futuro da humanidade? Esse debate é antigo. Lembro que o primeiro discurso contra máquinas foi feito em Londres, em 1812, por lorde Gordon Byron. As máquinas historicamente destruíram indústrias tradicionais, criando novas oportunidades, mas também destruindo as antigas.
A história humana mostra que as máquinas geram disrupção e nos levam a novos patamares. A diferença agora é que se trata de pensamento e habilidades cognitivas, não mais de força física ou velocidade. Se olharmos de forma objetiva, perceberemos um padrão que se repete; acredito que estamos adquirindo uma força que pode nos tornar mais inteligentes e ajudar a alcançar nosso potencial máximo.
Como a inteligência artificial contribuiu para o desenvolvimento do xadrez nos últimos anos? As máquinas transformaram como os jogadores se preparam, sem o uso de computadores, a preparação é impensável. Além disso, mudaram o foco de aberturas agressivas para um planejamento mais cuidadoso, evitando serem vítimas de análises superiores, levando a um foco maior no meio do jogo.
Essas transformações também facilitaram o envolvimento de mais pessoas, pois a pesquisa pode ser realizada mesmo sem grandes equipes. O fenômeno mais significativo aconteceu na base do xadrez, onde milhões assistem a partidas de Magnus Carlsen e Fabiano Caruana, mesmo sem comentaristas. Agora, você pode ver rapidamente se um movimento foi bom ou ruim.
Embora possa ser frustrante ver críticas a Magnus Carlsen por parte do público, isso ajuda a popularizar o jogo. As pessoas podem acompanhar as partidas mesmo em seus locais de trabalho e, embora muitos sejam jogadores medíocres, compreendem o que está acontecendo, o que é crucial, já que antes era difícil entender sem comentários e os comentaristas muitas vezes hesitavam em criticar os campeões.
Em agosto de 2023, a Fide proibiu a participação de jogadores transgêneros em competições femininas, por uma suposta vantagem masculina na modalidade. Qual a opinião do sr. a respeito da proibição? O xadrez é uma exceção, pois não sei se esse problema é relevante nesse esporte. Quanto a outras modalidades, ainda vejo a necessidade de categorias masculinas e femininas. Acredito que, se houver jogadores transgêneros, talvez devessem ser criadas categorias separadas, pois integrá-los ao xadrez feminino pode não ser a melhor abordagem.
Judit Polgár foi a única mulher a figurar no top 10 do ranking mundial. Os homens tendem a jogar melhor do que as mulheres? Por quê? Parece que sim, com poucas exceções. Judit Polgár foi uma jogadora única que provou que é possível, mas até agora, ninguém se igualou a ela. Isso pode estar relacionado ao espírito competitivo e às tradições sociais que dificultam mudanças imediatas. Exemplos como Judit mostram que é viável, mas as tradições ainda impedem que isso se torne comum.
Raio-X | Garry Kasparov, 62
Nascido em 13 de abril de 1963 em Baku, na então República Socialista Soviética do Azerbaijão, parte da antiga União Soviética, foi o campeão mundial de xadrez mais jovem, conquistando o título aos 22 anos, em 1985. Ele manteve o título até 2000, e cinco anos depois se aposentou do xadrez profissional. Em 2015, ajudou a fundar o Grand Chess Tour, circuito internacional patrocinado pelo Saint Louis Chess Club e pela Superbet Foundation.